O orgulho de ver seus filhes se tornando quem desejam ser

28 de junho de 2021 - 15:42

Assessoria de Comunicação da SPS
Texto:
Keiliane Gomes
Fotos:Tatiana Fortes /Governo do Estado e Arquivo Pessoal

É na partilha das semelhanças e na compreensão das diferenças que a Associação Mães pela Diversidade se desenha. O grupo, há pouco mais de quatro anos no Ceará, é um dos 23 cantos de aconchego, de fortalecimento e de informação espalhados pelo Brasil com o intuito de reunir e acolher mães de pessoas LGBT+. Mães que se ajudam e que aprendem pela dúvida, pela aflição, pela serenidade da outra. “É um grupo que nos fortalece muito, que lida com mães extremamente diferentes, de formações diferentes, de religiões diferentes. É um trabalho de acolhimento, de atenção e de partilha”, define Marcelle Costa. São quatro os amores de Marcelle e de seu marido Fernando: Petrus, Sofia, Sara e Morgana. Petrus é um jovem trans. “Ele foi uma criança muito desejada. Até os 9 anos de idade, foi filho único. Nessa época chegaram minhas outras duas filhas: Sofia e Sara. Quando ele tinha 12 anos, veio a caçula Morgana. Minhas crianças sempre viveram em harmonia, brincavam de tudo. Brinquedo é brinquedo”, conta. Foi então que, na adolescência, Petrus contou à mãe que era bissexual. Aos 17, afirmou em definitivo: era um homem transexual.

Não foi fácil para Marcelle e ela se pegou fazendo vários questionamentos sobre a razão pela qual aquela situação estaria acontecendo. Certeza só havia uma: o amor e o apoio a Petrus seguiam sendo incondicionais. “Uma coisa muito bonita que ele fez foi acolher o nome que tínhamos escolhido quando estávamos naquela fase da gravidez do ‘se for menino, se for menina’. O tempo foi passando, os amigos o chamavam de Petrus, mas eu não conseguia”, relembra Marcelle. Foi quando seu irmão a apresentou a uma amiga que já integrava a Associação Mães pela Diversidade. Lá estava Marcelle no grupo de mensagens do coletivo. Uma reunião. Grupos de apoio a famílias LGBT+.

“Acho que quase dois anos depois de ele me falar que era o Petrus foi quando comecei a chamá-lo assim. Um conhecido o encontrou na faculdade e o chamou pelo antigo nome feminino porque, convivendo comigo, sabia que até aquele momento eu o chamava daquela forma. Os amigos o repreenderam, ele ficou preocupado e outra amiga em comum comentou comigo. Conversei com Petrus sobre isso, ele reafirmou que era a forma como se sentia confortável em ser chamado. Eu falei ‘você nunca chegou para mim e disse: ‘mãe, a partir de hoje, me chame de Petrus’’. Ele disse que jamais me diria algo como ‘a partir de hoje, faça isso’. Aquilo me doeu muito. Naquele dia conversei com meu marido e entendemos que queríamos chamá-lo de Petrus”, conta, emocionada, Marcelle. E foi assim, aos poucos, um movimento da família.

No Ceará, o direito ao nome social nos serviços e órgãos estaduais é realidade desde 2017. No sistema estadual de ensino, essa determinação é ainda anterior, datando de 2012. Em 2018, o Ceará também avançou na autorização da mudança de gênero no registro civil sem a necessidade de processo judicial.

“São fases. As pessoas costumam dizer, sobre filhos trans, que é como perder um filho e ganhar outro. Durante um tempo, achei que estava chorando esse luto. Hoje entendo que não perdi ninguém. Todo mundo muda. Minhas filhas não são hoje as mesmas pessoas que eram há quatro anos. E não perdi nada. Meus filhos são pessoas melhores do que eu sou. Aprendo muito com eles. Todos os dias me ensinam muitas coisas”, reforça. Para Marcelle, cada família que sai do armário junto com o filho contribui para a construção de uma sociedade mais democrática. “É preciso se manifestar coletivamente. As pessoas se afetam por histórias, quando conhecem as pessoas e entendem suas vidas. Na verdade, essa coisa de querer classificar pessoas interessa para a manutenção das relações de poder. Para que o poder fique sempre nas mãos de quem sempre o teve: homens, brancos, heteronormativos, normalmente ricos. Isso é o ideal de manutenção de poder. E quem está na outra ponta recebe a desconfiança, o descaso, o desrespeito. É muito triste”, reflete. Como tantas mães de pessoas LGBT+, Marcelle se preocupa com a banalização crescente de discursos violentos e para o que isso pode evoluir. Ela teme pela vida do filho. Do seu. Dos de outras famílias. “É adoecedor. Há um discurso louco direcionado a pessoas LGBT+ em que muitas pessoas usam a bandeira da família como argumento. Mas quando você promove a homofobia, a transfobia, é você quem destrói a família. Quando alguém deixa de acolher um filho, aí há uma ruptura familiar”, desabafa Marcelle, para quem o maior orgulho é exatamente sua família. “Tenho orgulho de sermos uma família que optou pelo amor e por sermos e respeitarmos quem somos, do jeito que somos”, celebra.

Na casa de Yandra Lobo e de Ribamar Neto, amor e respeito também sempre foram a opção. E no lar onde evitar o sexismo era o norte, nasceram Bernardo, 10 anos, e Raul, 7 anos, que, desde os 4 se identifica com o gênero feminino. “A Raul estudou em uma escola onde não havia fardamento. Lá havia um cabide com roupas e fantasias para as crianças que faziam parte das brincadeiras. Houve um momento em que Raul começou a vestir uma saia diariamente, se sentia confortável assim. Um dia pediu para trazer a saia e nunca mais devolveu. Raul perguntava ‘posso ser uma princesa?’ e respondíamos que, na sua imaginação, poderia ser o que quisesse. Um dia Raul nos disse: ‘eu sou uma menina e não é só na minha imaginação’. Foi um susto muito grande. Tínhamos em mente histórias de muito sofrimento. E não negamos toda a violência que há no mundo. Mas na nossa trajetória familiar, felizmente, conseguimos construir uma bolha de muita segurança e afeto. Ela tem uma vida normal como a de qualquer criança cisgênero”, explica Yandra.

Auxiliada por terapeutas, a família de Yandra conseguiu construir o entendimento de que Raul estava experimentando a identidade feminina e que era legítimo. Hoje a mãe da pequena afirma que é uma situação consolidada. Não houve pedido para mudança de nome, fato que pode causar estranheza para alguns. “O que a gente vê é que as famílias são muito acostumadas a uma cultura binária. Então no momento em que Raul disse que era uma menina, o esperado é que perguntássemos qual seria seu nome e não fazemos isso”, revela. Yandra já acompanhava a Associação Mães pela Diversidade nas redes sociais. “Mandei mensagem dizendo que queria participar e contei um pouco da história. Rapidamente estabelecemos contato. Há confiança e entrega no grupo. A coordenação busca a pessoa com a história mais parecida com a sua para lhe receber e ter a primeira conversa. Ser mãe, ser família de uma pessoa LGBT+ traz várias questões. Você tem que estar sempre disponível para contar sua história, as pessoas pedem explicações. A gente precisa explicar a história dos nossos filhos várias vezes e tudo bem porque queremos construir um mundo melhor para eles. Mas é cansativo e, estando juntas, conseguimos dividir isso”, revela.

Yandra conta que sua maternidade passa muito pelo estudo. “Quando vi que Raul era uma criança “diferente”, entendi que precisaria me municiar de muitos argumentos. Lembro que o primeiro livro que li sobre essa temática mencionava uma família dos Estados Unidos, muito vulnerável, que teve o filho levado pelo conselho tutelar. Então conversei com um psiquiatra e com uma psicóloga para termos um laudo, uma comprovação de uma autoridade socialmente respeitada, no caso, médica. E comecei a pensar sobre isso em situações de mais vulnerabilidade social e a levar essa discussão para o coletivo. Nós conseguimos construir um lugar de conforto e segurança para Raul e passamos a pensar se isso seria possível para outras crianças”, explica. Yandra afirma que essa é uma das razões que os faz publicizar a história da filha. Ela entende que há poucos relatos sobre crianças trans pois há muito medo envolvido na forma como as famílias lidam com a situação, mas considera que encontrar outra família com uma história parecida, fortalece ambas.

A mãe de Raul também afirma que o combate à LGBTfobia passa pelo entendimento de que famílias são diversas e únicas e que, qualquer que seja a formação, merece respeito. “Precisamos inverter a lógica dessa ideia de proteção à família, marcando a posição da legitimidade das nossas famílias. Esse discurso tem que ser disputado, não pode estar somente na boca dos fundamentalistas”, ressalta. “Meu maior orgulho é a coragem que Raul tem, teve e segue tendo, porque acho que, por mais que tenhamos construído um ambiente seguro, as coisas não ditas, os olhares e as energias que circulam ao redor de Raul, a provocam. E a coragem de Raul ser o que é, saber quem é e nos contar tão precocemente me emociona”, conclui Yandra.

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