Ciência e tradição: Profissionais indígenas da saúde relatam suas conquistas e experiências fora da aldeia

19 de abril de 2021 - 10:26

Assessoria de Comunicação da SPS
Texto:
Sheyla Castelo Branco
Fotos: Natinho Rodrigues / Governo do Estado e Arquivo Pessoal

Juliana Pitaguary (34) e Aparecida Araújo (43) são profissionais da Saúde, mas não é só isso que elas têm em comum. As duas cresceram na aldeia Santo Antônio, do povo Pitaguary, em Maracanaú. Juliana é enfermeira e trabalha nos municípios de Pacatuba e Fortaleza, atendendo na Atenção Básica e na Urgência e Emergência. Já Aparecida é a primeira cirurgiã dentista indígena do Ceará e tem o sonho de trabalhar dentro da sua aldeia. A história delas é de conquistas e de resistências: duas mulheres que dominaram a ciência e que também recorrem à medicina das plantas e raízes que aprenderam com seus ancestrais.

Aparecida tem sua trajetória marcada pela conquista e dedicação. “Hoje eu tenho muito orgulho do que conquistei e dedico tudo isso à minha família, ao meu povo. Se eu cheguei até aqui é porque encontrava forças na minha comunidade, onde nunca faltou incentivo para que eu corresse atrás do meu sonho”, explica a cirurgiã dentista, que é filha do curandeiro José Augusto. “Meu pai é reconhecido tanto na aldeia como por pessoas de fora da comunidade. Ele nos criou com a medicina natural. Eu cresci vendo ele fazer lambedores, chás, qualquer pessoa que chegasse na nossa porta saia com um remédio natural, extraído das plantas”, conta Aparecida.

“Mesmo depois de formada e de conhecer a medicina tradicional, eu sigo acreditando muito no poder de cura da natureza. Não vejo nenhum problema em aliar as duas coisas. Nós temos plantas com propriedades antiinflamatórias e analgésicas, e isso é um saber que não deve se perder, eu faço questão de passar essa medicina natural para as minhas filhas e para os pacientes que demonstram estar abertos a conhecer esta outra abordagem”, conta a dentista, que lembra  o quanto essa “medicina popular” ainda é marginalizada. 

“Nós temos que desconstruir estereótipos sobre quem nós somos o tempo inteiro e eu não fiquei isenta disso. Na faculdade tive que enfrentar olhares de dúvida sobre minha capacidade. Não foi fácil, muitas vezes cheguei a me questionar o que estava fazendo ali, mas sempre que batia uma insegurança eu me agarrava no meu sonho, e na força que vinha do meu povo. Hoje eu me sinto muito realizada e desejo um dia trabalhar dentro da minha aldeia, mostrando que nós podemos fazer tudo que qualquer não indígena faz”,completa Aparecida.

Juliana Pitaguary trabalha na linha de frente da pandemia: na Urgência e Emergência. Juliana começou na área da saúde como técnica de enfermagem, atuando na Casa de Saúde do Índio e também no Pólo Indígena Pitaguary. “Eu me orgulho da minha trajetória. Para chegar até aqui tive que enfrentar muita coisa, mas nunca pensei em desistir”, ressalta a enfermeira.

“Outro dia, estava em casa e decidi fazer uma pintura jenipapo no meu corpo, numa tentativa de me conectar com minha ancestralidade e encontrar forças para seguir trabalhando mesmo com tanta pressão, medo e tudo que a pandemia vem despertando. Na mesma semana em que fiz a pintura, recebi olhares curiosos e até críticos no ambiente de trabalho, como se por ser enfermeira e estar em um ambiente formal eu tivesse que abrir mão da  minha identidade, e dos simbolismos que me trazem força”, desabafa Juliana, que também teve sua aparência questionada, tanto na faculdade, quanto no trabalho. 

“O meu cabelo cacheado e a cor da minha pele foram questionados muitas vezes. As pessoas diziam que nunca tinham visto indígena de cabelo cacheado. Infelizmente, ainda existe muito desconhecimento sobre a história do nosso Estado. Para mim é uma missão estar nesses locais e me afirmar enquanto indígena. Aprendi a ter muito orgulho da minha etnia e das nossas tradições”, completa Juliana Pitaguary

Nestas histórias de indígenas reais, não há espaços para figuras romantizadas ou folclóricas. Ainda há um longo caminho a percorrer nesta caminhada pelo reconhecimento dos povos indígenas no Brasil. O Estado do  Ceará vem se destacando na articulação de políticas pelo reconhecimento dos territórios e diversidade dos povos indígenas. No ano passado, o Governador Camilo Santana sancionou a Lei 17.165, reconhecendo a contribuição e direitos dos povos indígenas cearenses. 

 

Povos indígenas do Ceará

Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara,Tapuia-Kariri, Tremembé,Tubiba-Tapuia,Tupinambá e Karão.

Segundo a ONU, existem cerca de 370 milhões de indígenas em 90 países, o que representa em torno de 5% da população mundial. Trata-se de mais de 5 mil grupos diferentes que falam aproximadamente 7 mil línguas. No Brasil, de acordo com dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, há 896,9 mil indígenas presentes em todos os estados brasileiros. São 305 etnias, que falam 274 línguas. Há ainda um grande número de povos isolados, não contabilizados pelo Censo. O Brasil tem a maior concentração de povos isolados conhecida no mundo.